sábado, 25 de abril de 2020

Recordar o 25 de abril

«...Certa manhã de Primavera, junto com os outros meninos de calções, calcorreei o caminho da aldeia até à escola, sentei-me na habitual carteira de madeira, com tinteiro em loiça branca - tirei o caderno, os livros, o estojo com os meus lápis, as minhas canetas de cores brancas e pretas. A lareira estava apagada, o quadro negro estava apagado, estava o sorriso apagado em todos os professor estavam agrupados no pátio em torno de um pequeno rádio a pilhas. E de repente, nós todos de olhos esbugalhados nos vidros das janelas, a tentar perceber pelos rostos deles as notícias que davam na rádio. Não era o relato de um jogo, pois àquela hora da manhã não havia jogos de futebol, nem de hóquei-patins. Nem era dia de nossa Senhora de Fátima, porque estávamos apenas e ainda... a 25 de abril. Por certo Amália cantava o fado, mas não era razão para caras tão sombrias. Mas porque cabeça tem horror ao vazio, começamos todos a imaginar mil histórias. E na cabeça de meninos de 8 anos, é claro, mil histórias más. Será que uma bomba tinha caído em Lisboa? Alheios aos terrores dos alunos, os professores continuavam debaixo da árvore, em torno do sacrossanto rádio - que mais parecia um altar, a fazerem um sinal com as mãos, mandando-se calar uns aos outros, e aproximando as cabeças do aparelho para ouvirem melhor... Teria sido um terramoto? O mar que entrara terra adentro? Caramba, tínhamos mil perguntas, mil angústias e ninguém nos dizia nada. Onde está minha mãe? E meu pai? - pensava eu atormentado. Pensavam todos os meninos. De olhos nas janelas, olhávamos, só olhávamos. Os professores por vezes gritavam "Viva a Liberdade", por vezes ficavam apreensivos, calados, mas sempre em torno do rádio - só dispersavam um pouco, quando por vezes, para desespero de todos, era interrompida a emissão. Diziam palavrões e nós ríamos, pondo a mão em frente da boca. Nesse dia, escusado será dizer que não houve aula; não se escreveu sequer sumário. Fui para casa na hora de almoço e não voltei mais.(...) 
ouvia gritar: "O povo é quem mais ordena...!" Eram muitas as vozes, e uma multidão povoava a imaginação na minha cabeça. Mas lá longe, havia homens que ainda resistiam, havia tiros, havia o sinal da cruz no peito da minha mãe, o sobressalto de meu pai que logo tratou pôr de lado o prato de comida e o vinho no copo. (...)
"Agora já não precisamos ter segredos, pois não?" perguntava eu. "Não. Agora podemos falar de tudo, acho que podemos falar de tudo..." respondeu-me com um sorriso. 
Quando nos recolhemos no ninho, eu pássaro pequeno, por dentro dos cobertores, enroscado no pássaro grande, adormeci a ouvir explicações sobre a palavra Liberdade. (...)»

Excertos de O Pássaro dos Segredos, de João Morgado ( Kreamus: 2014)

Ouça agora este poema:



Leituras de abril: